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Intervenção nas comemorações dos 50 anos do 25 de abril

Natália Correia:

Dão-nos um bolo que é a história

da nossa história sem enredo

e não nos soa na memória

outra palavra que o medo.

O medo.

O medo viveu nas entranhas de Portugal durante muito tempo. Demasiado tempo. Com a barriga vazia, atrás das portas, sussurrava-se. Resistentes, descontentes e desobedientes: houve sempre quem segredasse esperança atrás da mordaça, mesmo sentindo medo. Foi tanto o tempo em que ficamos sem falar, que às tantas parecia que a voz não saía. Mas houve sempre sussurros, houve sempre histórias sopradas atrás de portas, houve sempre quem quisesse escrever um novo enredo.

Hoje, reunimo-nos para celebrar 50 anos do 25 de Abril. Seria altura de anunciar, com pompa e circunstância, o fim do nosso estado de alerta. Finalmente, após meio século, o povo português poderia baixar a guarda e viver sem o vislumbre de um regresso ao passado. Mas a História tem-nos comprovado a fragilidade dos sistemas democráticos e, por isso, a nossa missão é proteger e exigir as conquistas de Abril, sem dar descanso aos apologistas do ódio, do retrocesso, do estigma; àqueles que semeiam o medo para colher os seus frutos.

Entre a restrição das liberdades do povo, a censura, a guerra, a pobreza, o analfabetismo, a prisão e a tortura dos dissidentes do regime totalitário, havia pouco ou nenhum espaço antes para se viver. Antes de levantarmos os olhos e perdermos o medo, o que havia era o cinzentismo do simplesmente existir, arrastando os dias atrás de portas apenas abertas para algumas pessoas. Foram as conquistas de abril a trazer novas cores, no caminho da Democracia trilhado com eleições livres, mais Educação, um Serviço Nacional de Saúde, a definição de um Salário Mínimo, o Direito à Greve, com Liberdade de expressão, de oportunidades, e direitos iguais sem olhar a género, cor ou crença.

Ainda hoje, meio século depois, trilhamos esse tão frágil caminho, para que hoje nos possamos juntar e celebrar a prosperidade, caminhando em conjunto contra as forças antidemocráticas que ameaçam cada vez mais alto negar direitos e dividir o ‘nós’ que abril permitiu. Essas vozes do retrocesso armam-se sobretudo do descontentamento, da revolta, do Medo, e a única resposta possível e cada vez mais urgente é que — como aqui — nos reunamos e nos sirvamos das nossas vozes para reafirmar as nossas vontades e o nosso direito a elas, em luta incessante por quem e por aquilo por que já se lutou, e para que quem nos suceda tenha menos caminho para trilhar.

As portas que abril abriu só podem pelo Medo ser fechadas, e como tal, aqui afirmamos a nossa coragem para a luta de todos os dias, pelo reforço da Democracia e da Liberdade, não esquecendo que são frágeis e que é sempre mais fácil destruir do que construir. Continuamos a ter que todos os dias, nas nossas casas, ruas, bairros, cidades e país, construir esta democracia, ainda tão jovem, ainda tão suscetível.

Mas não admitimos nunca voltar atrás — não podemos voltar atrás e não podemos em qualquer circunstância deixar ninguém para trás. É imperativo que tenhamos sempre uma mão para estender a quem dela precise, e que reclamemos cada palmo de liberdades conquistadas, sempre sem medo — porque o medo é a arma do retrocesso, o medo é a arma de quem a cada porta entreaberta quer fazer regressar o cinzentismo da sua vida que tira a voz às nossas.

E porque o maior medo de quem nos quer calar é que não tenhamos medo, afirmamos aqui bem alto: Nós não temos medo!!!!

Saudemos a revolução de abril e o fulgor da esperança que despertou, esse é o nosso património, vimos de longe e vamos para mais longe ainda e anima-nos para a dureza da jornada esse sentimento doce e vigoroso que é a saudade do futuro.

É agora fazer outro tempo!

Viva a democracia! Viva a liberdade! Viva o 25 de abril!!!